03 fevereiro 2010

A Tia Cidalina.


Quando fui estudar para Coimbra, em Outubro de 1991, fui para casa de uma tia-avó velhota, solteira e sem filhos. Como a minha mãe era, das sobrinhas e sobrinhos, notoriamente a favorita, eu era como se fosse um neto. Aliás, já era habitual eu ir passar férias para casa da minha tia Cidalina, que morava pertinho da minha avó materna (de quem era irmã), visto a casa da minha tia, apesar de ter umas condições tenebrosas, sempre era um pouco melhor que a da minha avó, onde eu costumava fazer as refeições quando ia para Coimbra, de férias. Quando fui para Coimbra estudar, uma refeição por dia era em casa da minha avó e a outra era feita na cantina, para poder socializar com o pessoal.
Ora a minha tia Cidalina era muito galinha comigo e como eu, sobretudo a partir do 2º ano, abri as asas e voei, aquilo foi o descalabro! A minha tia passava-se, ela levantava-se de madrugada quando eu chegava a casa, fazia uma barulheira no corredor, chamava-me moinante, dizia que eu andava a tirar um curso de guarda-nocturno, que lhe dava cabo do coração (a pobre senhora era doente do coração, mas a verdade é que aguentou vários anos comigo a dar-lhe cabo do coração e morreu, aos 85 ou 86 anos e não foi disso!), que ia andar na faculdade mais anos do que os Castelão de Almeida (um famoso estudante de Coimbra dos anos 20/30 que andou na Universidade 11 anos), etc., etc., etc..
Ora, como acabei de dizer, a tia Cidalina era um entrave à minha vida boémia e eu, apesar de levar a vida que levava, a verdade é que não fazia ainda pior por causa dela. Quantas e quantas vezes o pessoal, depois das trupes, ainda ia a qualquer lado e eu ia para casa por causa da minha tia; quantas e quantas vezes eu saía da trupe antes de a trupe acabar, por causa dela; quem não se lembra – quem leu o blogue – das histórias em que fui para casa, podre de bêbado, e tive que me deitar na cama de um colega, para que ela não se apercebesse que era eu que chegava, ou da história de ter que ir vomitar para o telhado do vizinho para a não acordar ao vomitar e não ser descoberto, ou da história com o João Gouveia em que fomos para casa fingir que estudávamos para arranjar motivo para sair à noite (completar o estudo).
A tia Cidalina era uma velhota dos tempos em que os estudantes ainda eram “senhores doutores” e, durante os últimos cerca de 20 anos em que viveu na sua casa, teve quartos arrendados a estudantes e sempre lhes chamou “senhores doutores”. Mesmo quando expulsou algum de casa, nunca deixou de lhe chamar “senhor doutor”.
E era forreta! Muito forreta. Lembro-me que, em determinada altura, tirou uma lâmpada de um compartimento que havia junto à cozinha e onde estava a torradeira, porque, dizia ela, "as meninas chegam aqui para torrar pão e acendem logo a luz"! Assim, tinhamos que estar na penumbra proporcionada pela luz da cozinha quando queriamos torrar pão à noite! Era isso e o espalhafato que ela fez um dia em que eu troquei a lâmpada da cozinha - de 25W - para uma de 100W. Fartou-se de barafustar, argumentou que tanta luz lhe fazia mal à vista e voltou a meter lá uma lâmpada de 25W!
Todos os meus amigos conheciam a tia Cidalina e todos temiam telefonar lá para casa e ouvir alguma descompostura por me andarem a “desencaminhar” (a maior parte das vezes era eu que desencaminhava os outros, mas para ela não era assim). Mas o normal era telefonarem a perguntar por mim e ela soltar umas gargalhadas forçadas: ”Ah! Ah! Ah! Esse? A esta hora em casa? Ó Sr. Doutor, esse anda a tirar um curso de guarda-nocturno, nunca está em casa a essa hora! Desafie-o é para estudar!”.
Certa vez o Marralheiro chegou a casa de madrugada, podre de bêbado, e pôs-se em cima de uma cadeira a tentar pegar não sei em quê e caiu com estrondo no chão, fazendo a minha tia acorrer aflita e a perguntar “Sr. Doutor, Sr. Doutor, está tudo bem?”.
Em determinada altura a tia Cidalina adoeceu. Todos os dias tinha que tomar não sei quantos medicamentos a determinadas horas e alguns eram bem cedo. Além disso, como sabem, os medicamentos não devem ser tomados com o estômago vazio, por isso, e como a velhota não podia, o Brandão é que se levantava cedo e lhe preparava o pequeno-almoço e lhe dava os medicamentos. Se o Brandão já era o menino preferido da tia Cidalina – porque saía muito pouco e lhe fazia companhia à noite a ver televisão – ainda mais ficou a ser nesta ocasião, por isso era muito mais tolerante com ele e isso dava-me jeito, pois podia fazer aqueles desastres no quarto dele e dar-lhe as culpas, que ela não se chateava. Era por isso mesmo que eu guardava as minhas garrafas de vinho no quarto do Brandão, o que levava a tia Cidalina a dizer-me, em tom de segredo, “Ai, o Sr. Doutor Brandão bebe tanto!”. Bem, isso não se devia só às minhas garrafas de vinho no quarto dele, mas às garrafinhas plásticas cheias de whisky que o Brandão tinha no quarto e que lhe deviam servir para matar as insónias!
Era nestas ocasiões em que o Brandão fazia companhia à tia Cidalina que certa vez ela o quis pôr a par do que se passava numa qualquer telenovela e para explicar que uns indivíduos tinham levado uma moça para a praia e a tinham violado lá lhe explicou que “aqueles gandulos levaram a rapariguinha para a praia e fizeram pouco dela”.
A tia Cidalina era de um feitio terrível e super protectora em relação a mim. Foi por isso que qualquer rapariga com quem eu me desse bem lá em casa e com quem ganhasse mais confiança, ela tomava-a logo de ponta chegando mesmo a pô-la na rua. No meu segundo ano foi lá para casa uma moça irmã de outra que já lá estivera e eu comecei a dar-me bem com a rapariga. A minha tia pôs-lhe logo a alcunha de “pele de bacalhau”, que se agarrava a tudo e não se soltava. Tínhamos também o hábito de, em épocas de estudo, encontrarmo-nos na cozinha para uma pausa e comer qualquer coisa às tantas da manhã. Irremediavelmente, se a pausa demorava um pouco mais, lá aparecia ela a correr-nos dali para fora! Foi por isso que, a determinada altura, sugeri-lhe que metesse rapazes em casa, pois eu sabia que aquelas zaragatas todas eram por causa de eu estar ali com raparigas. Assim, aproveitei e meti lá amigos meus em casa e já tudo começou a correr melhor nesse aspecto.
Outro exemplo de mau feito era com os telefonemas que a patroa dela lhe fazia para casa. Ela era só atenções para com a patroa e costumava despedir-se sempre com “Beijinhos, beijinhos, beijinhos”, mas ainda o auscultador não tinha poisado e já ela dizia, com um tom de voz completamente diferente: “Beijinhos, beijinhos… Beijinhos no cu, com uma pedra!”.
A patroa da tia Cidalina não era mais do que uma senhora rica a quem a minha tia criara o filho e de quem era uma espécie de governanta da casa. Era ela que fazia as compras, era ela que dava ordens à mulher a dias, era ela que fazia a comida e era também lá que ela comia, tomava banho (que as condições para banho na casa da tia Cidalina eram atrozes), lavava a roupa, etc.. No fundo, já nem uma nem outra passavam sem a outra. Consta que um dia, ao deslocar-se para casa da patroa, em plena rua Luís de Camões, a tia Cidalina deu um espirro tal que a dentadura postiça lhe saltou da boca e caiu no meio do passeio. A tia Cidalina olhou à volta, viu que não estava ninguém por perto, baixou-se, apanhou a placa e meteu-a discretamente no bolso sem que ninguém reparasse.
A determinada altura, para poder ir para as trupes à minha vontade sem que ela se chateasse, vestia o pijama e fazia de conta que me fechava no quarto a estudar. A tia Cidalina deitava-se cedo e, normalmente, por essas dez e meia da noite já estava na cama. Então eu esperava uns 30 ou 40 minutos e, ainda com o pijama vestido, pegava na capa e batina, abria a porta do meu quarto com muito cuidado, ia pelo corredor fora no mais completo silêncio (o que era difícil, pois era uma casa antiga e o chão rangia que parecia um burro a zurrar), abria a porta da rua sem fazer barulho e, já com a chave na fechadura, fechava a porta por fora. Estamos a falar de eu demorar uns 10 minutos numa operação em que, normalmente, não demoraria mais de 10 segundos! Já fora de casa, vestia-me ao cimo das escadas e lá ia eu fazer as minhas trupes, com o pijama vestido por baixo da capa e batina. Quando chegava ao cimo das escadas, despia a capa e batina, entrava em silêncio, ia pelo corredor, entrava no quarto e já estava! Fiz isto uma série de vezes, até que um dia, ao chegar a casa, ao abrir a porta da rua, olho para o fundo do corredor e a porta do meu quarto estava aberta e logo vejo a luz do quarto da tia Cidalina acender-se. Tinha desconfiado por me deitar cedo tantas vezes que entrou no quarto a ver se eu lá estava mesmo! Fui corredor fora, entrei no quarto e lá a ouvi levantar-se e vir para o corredor barafustar o paleio do costume: “que eu era um moinante, que andava a tirar um curso de guarda-nocturno, que lhe dava cabo do coração, que ia lá andar mais anos que o Castelão de Almeida”… Foi a última vez que fiz isto. Daí em diante nunca mais saí às escondidas. Nem havia necessidade, pois ela barafustava, barafustava mas não fazia nada e continuava-me a dar o leite na cama (o que, por vezes, era horrível, quando eu estava com uma ressaca monstra; uma vez deitei-me com uma borracheira tal, que ela me foi dar o leite à cama e eu não acordava; conta o Brandão que ela começou: "Oh Jó! oh Jó! então? Parece que bebeste vinho!"), a dar-me alguns jantares, a lavar-me e a passar-me a roupa…
Após alguns anos a viver lá em casa e porque ela se queixava de dores de barriga, foi-lhe diagnosticado cancro. Foi operada, mas já não adiantava, pois já estava espalhado. Mas com a idade que tinha, o cancro não avançava rapidamente e acabou por nem sequer morrer disso. Mas a verdade é que, após a operação, nunca mais foi a mesma e, apesar de poder andar e mexer-se bem, os sobrinhos decidiram que já não tinha condições de viver sozinha e acabou os seus dias num lar, felizmente rodeada de tudo o que necessitava. Ainda durou alguns 4 ou 5 anos e a sua preocupação era que o lar era muito caro e não tinha dinheiro para pagar aquilo; que queria ir para um lar mais pobre, mas a minha mãe não deixou e suportou ela as despesas quando o dinheiro da minha tia acabou. Eu era o sobrinho que mais a visitava, mas hoje sinto remorsos de não a ter ido ver mais vezes, chegando a passar uma semana sem lá ir. Acabou por falecer durante a latada de 2003. Até na morte, a tia Cidalina me estragou alguns dias de moina!
Já agora, um reparo: a tia Cidalina acertou numa profecia, pois eu andei mais 2 anos que o Castelão de Almeida, de quem fui (e sou) um admirador e seguidor!

7 comentários:

Anónimo disse...

Um dos teus melhores posts de sempre, douto amigo. Gostava de a ter conhecido!
Andreia

Sebastião Batalha disse...

Como sempre é um gosto ler as tuas crónicas, de uma Coimbra muito diferente daquela que conheci e na qual estudei ( em 20 anos muito mudou, como deves saber). Mas ao escreveres estas crónicas fazes com que as pessoas, acredito que mesmo aquelas que nunca andaram em Coimbra, se sintam as protagonistas das histórias por ti vividas. Isso é raro.

Um livro com estas histórias seria com certeza uma boa ideia, para animar o panorama cinzento da escrita em Portugal. Com certeza terás aqui um comprador.

Abraço

mackies disse...

Concordo inteiramente com o comentário acima. Todos os dias cá venho ver se há posts novos, a facilidade com que colocam as pessoas "dentro" da história é enorme, e estudando e vivendo eu em Coimbra desde que nasci, queria para a Coimbra de hoje o que vocês passaram. Vocês têm o mérito, vocês foram a mudança que queriam ver em Coimbra, e sendo eu uma pessoa que gosta bastante de praxe (não sei o Código de Praxe de trás para a frente como vocês sabiam), mas sei muitas coisas.
Gostava de perguntar se eventualmente não irão por mais fotos, nem que seja agora nas patuscadas que fazem, se bem que já tenho uma imagem criada de cada um de vocês :)
Um grande abraço e não deixem de escrever, quem sabe se um dia não escreverão um livro?

Porque vocês conheceram a verdadeira Coimbra....

Batinas disse...

Muito obrigado pelos comentários. São comentários destes que me dão força e vontade de continuar a escrever as histórias que vivi em Coimbra. Como acho que já escrevi (e se não o fiz, já o disse muitas vezes), eu andei por lá 13 anos (com 6 meses de erasmus pelo meio, dos quais também escrevi material para um livro) e as histórias vão ficando quase todas contadas. Por vezes lembro-me de mais uma ou outra e vou tomando nota para escrever quando puder, mas o filão está a esgotar-se mais cedo ou mais tarde. Quanto ao livro, é uma coisa que tenho em mente já há alguns anos e espero daqui a mais um ano ou dois publicar estas e as histórias de Erasmus. Claro que as editoras dificilmente publicarão um autor desconhecido e sem pretensões a ser um intelectual, com uma escita complicada, mas há a hipótese de o publicar em edição de autor, através da internet. O problema seria a distribuição, mas isso logo se vê.
E quanto às fotos, é uma questão a ponderar. por mim, não tenho qualquer problema, mas pelos meus amigos não posso falar. Vou ver se estão de acordo. Se bem que fotos minhas podem ser vistas no meu outro blogue, mas claro que se referem a fotos dos tempos de Coimbra ou de festarolas.
Mas uma vez, obrigado pela atenção com que seguem o blogue e pelos elogios.

Anónimo disse...

Claro que me lembro da Dona Idalina, tive o prazer de conviver muitos anos com ela - pudera, era vizinho - e é com alguma saudade que guardo na memória o convivio que me foi possibilitado ter com o meu mais antigo amigo (o Quim) e com mais algumas insignes pessoas que por aqui andam ou são nomeadas.
Um grande abraço para elas e, no geral, para essa geração de pessoas que saiu da FEUC.
Hoje em dia já não se travam conhecimentos nem se fazem amigos assim.
Ass: João, o Iscaquiano Com o Hábito Mortífero

off topic:
acho piada de vez em quando virem para aqui uns murcões mandar bocas neste blog e insultar pessoas. Bem, eu acho que nenhuma destas pessoas aqui inscritas e descritas neste blog tem culpa de os senhores murcões não terem vivido a vida enquanto puderam, nem culpa que os senhores murcões não possuam nenhuma história interessante de vossas próprias excelências para contar aos vossos filhos/netos. Frustração é tramado.

Paulo Martins - Norberto Botelho disse...

A primeira vez que fui a casa da Tia do Batinas, tinha acabado de entrar na Faculdade. A Senhora viu-me e começou a barafustar que eu tinha cara de puto, como era possível eu já estar na Universidade. Se fosse hoje até gostaria, mas na altura fiquei bastante desorientado. Passado uns tempos voltei lá (cheio de medo de levar com outro comentário menos elogioso) mas a Tia do Quim não me disse nada. Nesse dia, senti-me bem e pensei. "Finalmente já sou um homem!"

Fátima Figueiredo disse...

Sou mãe do Figueiredo e só hoje tomei conhecimento do seu blog. Concordo com tudo o que diz sobre a Praxe, pois nasci, cresci e formei-me em Coimbra, em 1973. De tudo quanto li, retive a estória da Tia Cidalina. Conheci muitas "Tias Cidalinas", apesar de viver em Coimbra com os meus pais. Ao lê-la, revivi todo esse passado que me parece já não existir. Será que às "Tias Cidalinas" aconteceu o mesmo que aos dinossauros? É uma pergunta que deixo no ar...

Dou-lhe os meus sinceros parabéns pela Tia que teve e, sobretudo, pelo "amor filial" que sentiu por ela e que deixa transparecer no texto. Que onde ela esteja, continue a servir-lhe o "leitinho espiritual" nos momentos mais precisos. Mesmo quando esteja enjoado.

Viva as "Tias Cidalinas" desta Cidade.

Com amizade,

Fátima Figueiredo